por Suely Amaral Mello
No momento em que escrevo este posfácio, a educação
infantil vive mais um ataque do neoliberalismo na figura da Secretaria de
Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da Republica. A discussão deflagrada
em torno dessa questão me faz lembrar uma reflexão proposta por um filme que revi recentemente - O Ponto de Mutação -,
baseado no livro de mesmo nome e escrito por um físico alemão radicado nos
Estados Unidos, Fritjof Kapra, cuja leitura recomendo a todos que ainda não o
tenham lido... uma daquelas leituras que constituem um verdadeiro ponto de
mutação. Ninguém é o mesmo depois da leitura ou da reflexão desenvolvida no
livro/filme, pois nos leva a rever a vida diária em nossa relação com as
pessoas, com as coisas, com o planeta.
Um diálogo quase ao final do filme lembra-nos que vivemos num mundo em
que 6% da população mundial – a população estadunidense - consome 40% dos
recursos naturais do planeta. O diálogo lembra que as pessoas fazem isso para
serem felizes, mas, ao mesmo tempo, metade dos jovens dessa mesma população já
pensou em suicídio e uma em cada 5 meninas adolescentes já o tentou.
De um modo geral, nosso tempo é marcado por uma obsessão quase doentia
pelo progresso e por um crescimento que tem se mostrado destrutivo, patológico,
alienado e extenuante da natureza humana.
O que podemos de fato fazer com relação a isso?
Por onde começar a mudar essa marca desse nosso tempo é uma reflexão
também promovida pelo texto/filme. E a sugestão é que deveríamos começar por
dar importância para a próxima geração e às seguintes, frente à constatação de
que quando paramos de incluir as futuras gerações em nossas teorias científicas
e em nossa infinita busca de crescimento, colocamos em risco a vida no planeta.
Por isso é que não nos incomodamos quando adotamos a energia nuclear que deixa
o plutônio sob forma de lixo para a próxima geração e para a próxima e para a
próxima e para a próxima... na verdade, para as próximas gerações pelo próximo
meio milhão de anos. Essa reflexão diz respeito à necessidade de
verdadeiramente assumirmos que não evoluímos sobre o planeta, mas com o
planeta.
Gostaria de
comentar a proposta do Seminário “Cidadão do Futuro: Políticas para o
Desenvolvimento na Primeira Infância”, realizado recentemente em Brasília sob
os auspícios da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da
Republica, a partir dessa reflexão, a
partir da necessidade de darmos importância às crianças, se o que queremos é,
de fato, criar uma sociedade sustentável com pessoas preocupadas com a vida e
satisfeitas não pelos objetos que possuem ou insatisfeitas pelos objetos que
não possuem, mas satisfeitas porque se dão conta todos os dias daquilo que o
biólogo inglês, Richard Dawkins, chamou em seu último livro de o maior
espetáculo da terra: a vida em sua engenhosa, sofisticada e maravilhosa
materialidade eivada pelo espírito criador humano.
Desse ponto de vista, vale perguntar, antes de entrar especificamente na
discussão acerca do Seminário promovido pela SAE referido acima: qual o sentido e o significado da relação adulto criança
e o que estamos fazendo com nossas crianças em nossa sociedade quando
consideramos a situação de risco e vulnerabilidade à violência a que podem ser
submetidas as nossas crianças pequenininhas - mesmo aquelas vivendo em lares ditos
normais e com promessa de pleno desenvolvimento como cidadãos que tem direitos
anunciados, ainda que não concretizados? O Seminário - que tem mobilizado as
universidades, a Campanha “Todos pelo Direito à Educação”, o CEDES, a ANPEd, o
Fórum paulista de educação infantil e outras organizações ligadas à
educação pública, gratuita e laica – chama a
atenção porque embora a educação das crianças pequenas tenha suas diretrizes e
regulamentação estabelecida pelo MEC e CNE, a Secretaria de Assuntos
Estratégicos da Presidência da República está apresentando uma política de
desenvolvimento da primeira infância que nada tem a ver com as pesquisas e a
legislação brasileiras. Apenas para dar um exemplo, os debatedores do tema
Medidas para Avaliação do Desenvolvimento Infantil são profissionais ligados à
área da economia e não à educação das crianças pequenas.
Na mesma linha de assalto à educação das crianças pequenas, é o
assustador o Ages &
Stages Questionnaires – ASQ-3, já em uso pela Secretaria Municipal de Educação
da cidade do Rio de Janeiro, com o qual se pretende avaliar a qualidade
da Educação Infantil. Conforme palavras do “Manual de Uso” ou “Guia
rápido para aplicação AQS-03” – que soa como fórmula química de pesticidas –
“Trata-se de um conjunto de 20 escalas para crianças de diferentes idades
cobrindo o intervalo etário de 1 mês a 5 anos e meio. Cada escala avalia o
desenvolvimento da criança ao longo de cinco dimensões: Comunicação, Motora
Ampla, Motora Fina, Resolução de Problemas e Pessoal e Social. O
desenvolvimento em cada um dos domínios é avaliado com base na resposta a seis
quesitos. A partir dos resultados obtidos, será possível pensar em ações e
políticas direcionadas às reais necessidades. Será possível um planejamento
estratégico por região, respeitando diferenças e especificidades, bem como um
planejamento intersetorial mais eficiente.”
Quando se fala em medidas para avaliar desenvolvimento infantil da forma
como se está propondo, com o foco recaindo na criança, tratamos o desenvolvimento
humano como se fosse natural e não resultado de sua interação com as coisas,
com as pessoas, com o mundo que a rodeia. Já é bastante conhecida a “dose
certa” para promover a qualidade da educação em qualquer nível etário a que
esta se destine: investimento na carreira docente, na formação continuada
dos/as professores/as, na qualidade do trabalho que envolve salário, condições
materiais de vida e trabalho das/os professores/as, infraestrutura seja das
creches, das escolas infantis ou das escolas de ensino fundamental, muito se
tem anunciado e pouco se tem concretizado.
Quando se
fala em medida para avaliar, como comprova o texto do manual de avaliação
apontado acima, fala se em testes diagnósticos que têm, ao longo de sua
história que se inicia na virada do século passado, provocando uma inversão de
valores e um atraso na escola. Em lugar de humanizar, a escola passa a se
preocupar com preparar para os testes. E quem denuncia essa euforia
deshumanizadora da escola é nada menos que o ganhador do prêmio Nobel de
Economia em 2000, em entrevista recente à Folha de São Paulo. Premiado
por seu trabalho de avaliação do impacto das políticas públicas na vida das
pessoas e das sociedades, esse professor da Universidade de Chicago afirma que
os testes estigmatizam, não promovem a formação e o desenvolvimento da
inteligência e da personalidade das novas gerações, servem apenas aos adultos e
estressam as crianças.
Nessa mesma linha de denúncia, o filme intitulado Race
to nowhere - Corrida para lugar nenhum – aponta a epidemia silenciosa que tem
tomado conta das escolas estadunidenses e o custo social e humano que envolve a
submissão das novas gerações aos testes.
È, ao mesmo tempo, um apelo às
famílias, aos professores e aos políticos para ajudar a superar a ideia de que
o sistema educacional pode e deve fazer todos os alunos e alunas, meninas e
meninos caberem num “tamanho único”. O
impacto tamanho do filme, frente à verdade inconveniente que ele revela, fez
surgir um movimento pela volta à escola em que as crianças possam viver sua
infância. Oxalá este movimento possa servir de apelo ao bom senso dos
brasileiros formuladores de políticas publicas.
A realidade grita! O Brasil é hoje o
segundo maior consumidor de Ritalina no mundo – a droga da obediência como é também
conhecida. São mais de dois milhões de caixas vendidas para aquietar crianças
“desobedientes” ou inadaptadas ou inconvenientes... ou perguntadeiras, ou
curiosas, ou criticas, ou inconformadas ou tristes. O índice de prescrição de
remédios cresceu 940% em 4 anos. Com esse crescimento espantoso, os direitos
humanos vão sendo destruídos, as diferenças entre as pessoas vão sendo
pasteurizadas. Doenças biológicas como o
déficit de atenção, hiperatividade e outros déficits que costumam aparecer na
base de 1 caso em um milhão de indivíduos começam a ser encaradas como
epidemia, epidemia de incapacidades... confundimos obediência com efeito de
toxidade e, ao mesmo tempo, empurramos nossas crianças para o consumo futuro de
drogas, iniciando-as precocemente nesse consumo.
São muitos os indicadores de que nossa
sociedade está produzindo crianças estressadas, deprimidas e fracassadas,
crianças que nos anos iniciais do ensino fundamental e em alguns casos, mesmo
na educação infantil, já são avaliadas como defasadas, atrasadas, incapazes e,
em lugar de revermos a atitude da sociedade em relação à infância, muitos
entendem que podem simplesmente tratá-las com drogas e terapia. Uma sociedade
que age assim tem algo de errado.
É
importante considerar que as crianças constituem o grupo social mais vulnerável
e de maior risco em nossas sociedades contemporâneas: o maior grupo etário que
vive em condições de miséria, vulnerável à exploração sexual e ao trabalho
infantil, mas também vulneráveis ao consumo indiscriminado e ao ódio religioso
- ambos inculcados numa idade em que as escolhas não são dadas às crianças, mas
impostas de modo que são absorvidas sem que percebam essas sutis mas profundas
formas de violência, sem que percebam que essas idéias não resultam de vivências,
mas são impostas de modo silencioso de tal forma que, no futuro, dificilmente
poderão ser colocadas em dúvida, pois elas parecem próprias de cada um. E,
desse modo, serão adotadas como as únicas possíveis, e assumidas como naturais
e não históricas e culturais, isto é, determinadas pelas condições de vida e
educação de cada pessoa.
Sem
considerar o complexo processo de humanização que acontece ao longo da
infância, de um modo geral, nós adultos temos decidido pelas crianças sem ouvi-las
e sem observá-las, sem nos colocar em seu lugar, sem considerar o significado
das opções que fazemos por elas. Decidimos, por exemplo, que o melhor para
elas, nessa sociedade competitiva que criamos, é sair na frente para chegar
primeiro... onde? Decidimos o que elas devem fazer, o que elas conseguem fazer
e o que não. Decidimos o que devem pensar.
Os adultos estabelecem expectativas de aprendizagem
para as crianças: é o “tamanho único”
engessando a experiência das novas gerações. Mais que isso, esse termo,
presente nas Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental (Resolução
07/2010 artigo 49) e do Ensino Médio (Resolução 5/2011 artigo 22), não está
presente e nem cabe nas Orientações Curriculares da Educação Infantil.
Enfim, frente aos ataques que a educação infantil não
pára de receber, este livro - agora em sua 3ª edição - é novamente uma
conclamação a que continuemos a ouvir as crianças em todas as suas formas de
expressão por meio de suas diferentes linguagens e
a ampliar as pesquisas sobre as crianças pequenas de 0-6 anos e sobre a
formação dos/as professores/as e de todos/as os/as profissionais que atuam
na educação das crianças nas creches, nas escolas infantis e nos anos iniciais
promovendo essa formação cada vez mais com base naquilo que as pesquisas tem revelado
sobre as crianças – ideia defendida por Tullia Musatti como sendo formação +
pesquisa = inovação. Que continuemos em nossa guerra de guerrilha
na defesa de uma educação emancipatória desde o nascimento, o que envolve a luta por
todos os direitos das crianças pequenas: entre eles, além da educação, o
direito à arte, a imaginação, ao lúdico, ao não trabalho, o direito a não
ser avaliada individualmente e assim estigmatizada... o direito a não
ser inserida nessa “corrida para lugar nenhum” que lhe roubará a infância em
benefício da ganância de outros.
Indignados frente a este infeliz seminário que desde
seu título – Cidadão do Futuro - mostra ignorar a infância do presente, jovens
professores/as e pesquisadores/as da educação infantil, membros do grupo gestor
do Fórum Paulista de Educação Infantil (FPEI), elaboram um manifesto em defesa
de todos esses direitos das crianças pequenas hoje. Agradeço o FPEI por
permitir que eu finalize esse posfácio com este “manifesto indignado”.
Manifesto indignado do FPEI: Avaliar para que? E para quem?
O velho mundo
morre enquanto o novo tarda a aparecer. No claro-escuro perfilam os monstros (Antonio Gramsci).
O Fórum Paulista de
Educação Infantil traz seu manifesto indignado, contra as ondas de controle, ou
melhor, a este verdadeiro tsunami que
invade os territórios da educação das
crianças pequenas, a avaliação em larga escala do desempenho das crianças de 0
até 6 anos de idade, por meio de testes, questionários, provas e quaisquer
outros instrumentos, que não respeitem as crianças como produtoras de culturas
infantis.
Ao lado dos bebês e das
crianças, defendendo-as em seus direitos como produtoras de culturas, há
diversos documentos, pesquisas e leis que abrangem as especificidades das
infâncias. Desta forma, não podemos admitir que tais procedimentos avaliativos
se instalem, ignorando e desconsiderando todo processo de concepção sobre
Educação Infantil e avaliação presentes na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (Lei n. 9394/96), nas Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação
Infantil (Resolução CNE/CEB nº 05 de dezembro de 2009) e nos Indicadores da
Qualidade na Educação Infantil (2009).
Há, portanto,
que considerar – ouvindo - os professores e professoras, pesquisadores e
pesquisadoras, enfim os tantos profissionais da educação que, ao longo dos
anos, têm aprendido com as crianças e não só sobre elas... aprendido com as crianças reais, em ambientes coletivos de
educação. Esses ambientes sim, merecedores da avaliação detalhada de seus
contextos organizativos de tempo, espaços, interações, formação docente,
propostas pedagógicas, formas de registro do tempo,
do espaço , enfim, das “condições dadas” para a produção das culturas infantis
e formas de registro da experiência vivida, aprendida, transgredida, desaprendida,
inventada, recriada, etc. Sempre uma avaliação da instituição e do
projeto pedagógico, além da avaliação das políticas públicas (gestão, recursos
financeiros, pedagógicos, etc.); jamais avaliação individual das crianças, que
tem sido historicamente produtora de estigmas e de pressão contra as crianças e
não de condições favoráveis à formação humana em suas múltiplas dimensões.
De outro lado, nossos
estudos, pesquisas e trabalho pedagógico com as crianças pequenas nos mostram que
a infância é uma construção histórica e social, o que torna impossível imaginar
a proposição de um instrumento que quantifica, para avaliar as descobertas, as
invenções, enfim as experiências das crianças.
Sendo assim, como não nos indignarmos diante da
possibilidade de uma proposta de avaliação nacional que desconsidera a
existência das diferentes infâncias e crianças e, em especial, o lugar de
cada uma delas na estrutura da sociedade brasileira segundo a classe
social, pertencimento racial e étnico, gênero e cultura, entre outras
diferenças?
As meninas e meninos nos
mostram e nos revelam que as diferentes e múltiplas dimensões humanas não são
passíveis de serem retratadas ou aferidas, com dignidade, por testes ou
avaliações pré-formulados, a partir de uma visão de um modelo de criança que
verdadeiramente e felizmente, não existe.
Assim não é possível
compactuar com a disseminação de mecanismos de avaliação que se circunscrevem à
classificação das crianças, tendo por base categorias definidas a priori, que
revelam um padrão esperado e idealizado do que as crianças devem ser em cada
faixa etária. O objetivo fundante de tais instrumentos, que menosprezam as
dimensões humanas em construção desde o nascimento, é basicamente avaliar se a
resposta é certa ou errada, ou se o comportamento do bebê ou da criança
corresponde às normas e as expectativas pré-determinadas. Tais modelos de
avaliação, revestidos pela ótica falsamente objetiva e padronizada, apregoam a
possibilidade e a crença de poder apreender a realidade com precisão. Crença
esta, que só se sustenta na perspectiva da avaliação tradicional, balizada por
duvidosos diagnósticos, descontextualizados e antidemocráticos, capazes de
definir currículos homogeneizantes e práticas sem significado, moldando e
reforçando comportamentos, tendo em vista sua adequação ao produto final
esperado. Essa concepção etapista da educação infantil não cabe mais em lugar
algum.
É nessa perspectiva que
se instala nossa indignação. Afinal, não podemos retroceder e desconsiderar os
avanços significativos que a educação da pequena infância vem construindo nas
últimas décadas, com a inestimável e generosa participação das crianças, em
relação à avaliação e aos processos de documentação pedagógica. Esses avanços
já fundamentam inclusive as bases legais que sustentam a primeira etapa da
educação básica, a Educação Infantil do país, como já sinalizado. Avanços que
anunciam a possibilidade de pensar em propostas avaliativas que considerem as
crianças reais, suas vozes, experiências, culturas e saberes, e ainda
impulsionem a construção de uma educação da infância de qualidade e digna de
todos os bebês e crianças deste país, cuja riqueza, inteligência, curiosidade e
inventividade, não cabem em testes, questionários ou provas. Tais instrumentos
que querem implantar são pequenos, são indignos da grandeza de nossas crianças.
Não estaremos jamais ao
lado dos que querem aferir os conhecimentos dos bebês e das crianças pequenas
com provas e teste e estaremos sempre em defesa da Pedagogia da Infância que
aprende a cada dia os alcances da capacidade inventiva e transgressora das
crianças pequenas. Não admitimos que uma avaliação que não serve para as
crianças do ensino fundamental, por inúmeros motivos, dos quais destacamos
hierarquizar escolas e restringir currículos à preparação para provas, seja
estendida à Educação Infantil.
Fonte:
MELLO, Suely Amaral de. Posfácio à 3ª edição. In: FARIA, Ana Lúcia Goulart de e MELLO, Suely Amaral de (orgs). O mundo da escrita no universo da pequena infância. 3ª ed., Campinas-SP: Autores Associados, 2011, p.115-124.(reprodução autorizada pela autora)